lunes, 3 de agosto de 2009

Pedra Filosofal de António Gedeão

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

In Movimento Perpétuo, 1956

lunes, 11 de mayo de 2009

Elogio à Mulher Portuguesa


A mulher portuguesa vive ainda amordaçada pela sua condição de mulher. Debaixo de um luto eterno ecoam sons melancólicos e fatídicos do fado da sua vida. A nossa sociedade é injusta, e até cruel, para com as nossas mães, mulheres e amantes. Marcada ainda pelos castradores dogmas católicos, este ser maravilhoso parece condenado a penitenciar por um pecado original de uma Eva que nunca pecou, enquanto Adão sempre soube permanecer impune. A mulher pode ter muitos defeitos, mas no que respeita a “pecados” fica bem atrás do homem.
Apesar de todos os progressos, a mulher portuguesa continua forçada a viver uma sensualidade escondida na vergonha do medo e da ignorância de uma sociedade hipócrita e minada de esterótipos anacrónicos. A mulher portuguesa parece ter medo, quase vergonha, do seu corpo. Trata-o mais como um empecilho do que uma obra de arte da natureza esculpiu. Já alguma vez se interrogaram porque razão as mulheres portuguesas, sobretudo depois de casarem, se vestem tão desajeitadamente, tão cinzentas e sem graça, como se fossem avós? Será o eterno fantasma chamado “medo”, seja medo dos outros ou medo delas próprias.
A mulher portuguesa não é feliz porque não a deixam ser livre. Vive acorrentada a preconceitos teimosamente reincidentes, mesmo na camada mais jovem da população. Se seduz é uma desavergonhada, se ousa é uma descarada, se está livre é um perigo, se triunfa na vida é porque dormiu com alguém importante, se é bonita é tratada como uma peça de museu, assediada com piropos de rapazes imberbes e propostas indecentes de labregos que abundam nas nossas praças.
A mulher portuguesa tem um sorriso bonito e meigo, mas reprimi-o com o medo que este seja interpretado como um sinal de uma coisa que nem lhe passou pela cabeça. É obrigada a carregar um pesado fardo de deveres e obrigações que lhe atormentam a vida. Enquanto jovem, é a família que lhe limita a diversão. “O namoro deve ser uma coisa séria”, de preferência já a pensar no casamento. E será o casamento a chave da independência há tanto ambicionada?
Pura ilusão. Rapidamente a mulher se apercebe que a liberdade não passa de uma vã miragem. Do jugo da família passa para o jugo do marido e, mais tarde, dos filhos, dos pais, dos sogros e o que mais houver. Do estatuto inebriante de amante ela passa rapidamente àquele que parece ser o seu estado natural, “mãe” e “dona-de-casa”, mesmo apesar de trabalhar fora de casa como o homem. Neste estado ela vê-se remetida para uma existência asexuada, longe de ser uma verdadeira mulher. Uma mulher “dona-de-casa” não tem tempo para o romance pois o seu quotidiano é preenchido com a azafama da casa, das compras e dos filhos. A este estado de “mãe dona-de-casa”, na física designa-se por atractor estável: uma vez que o sistema entre nesta zona fica aí aprisionado para sempre.
A mulher portuguesa não tem espaço para ser mulher. Que tempo resta para pensar em si, para sentir e partilhar o amor que possui no seu coração? Por vezes não passa de um corpo cansado dos deveres domésticos e que transporta uma mente ocupada de problemas e tarefas rotineiras, sem imaginação e sem espírito, mas com muita dedicação e muito amor.
A mulher portuguesa pode não ser tão bonita e vistosa como a francesa ou a italiana, mas é das mulher mais ternas, apaixonadas e dedicadas que conheço. De outra forma como podia ela suportar uma existência tão madrasta? Na sua ingenuidade e carinho ela guarda uma grande sabedoria que não aparece em nenhum livro ou registo, mas que se sente no calor da sua presença. De uma forma discreta ela mostra o seu amor por tudo o que lhe é querido, enquanto fica à espera. À espera que um dia lhe deixem ser aquilo que sempre sonhou: mulher.



Armando Vieira, PhD Departamento de Física Instituto Superior de Engenharia do Porto
Fotografía: Estátua no local do torrão , distrito do porto: "Homenagem à mulher portuguesa"